Não raro as medidas do governo Francês no que toca as liberdades religiosas e as medidas protencionistas da nação francesa contra a invasão estrangeira esbarram em discussões pelos direitos humanos e pela liberdade de expressão. Os exemplos que sempre vêm à baila são a proibição do véu islâmico e, agora, a questão dos ciganos romenos. Conheço a França razoavelmente bem e tenho um profundo respeito pela cultura francesa. Concordo que a linha entre o nacionalismo desenfreado e as ações que visam proteger uma cultura seja demasiado tênue. Sem a menor sombra de dúvidas esse tipo de ação pode levar, e a história nos mostra, a extremos e à ascensão da extrema direita. Um exemplo extremo disso foi Hitler e o Nazismo. Contudo é preciso compreender o contexto que fez o povo francês, através de seus representantes, tomar certas decisões polêmicas.
A França sempre foi um país de exílio. Recebeu e ainda recebe perseguidos políticos e exilados do mundo inteiro. Acho uma injustiça tremenda tachar a França de xenofobista. O que se assiste na França desde algum tempo é a invasão dos ciganos romenos e de pessoas vindas do mundo islâmico. Quanto aos ciganos posso apenas dar uma impressão pessoal. Na última vez que lá estive vi enormes acampamentos ciganos que tomavam as entradas das cidades. Sujavam tudo. Onde passavam deixavam um rastro de sujeira e destruição e ainda há a alegação da população de que eles estejam envolvidos com roubos e delinquência. Essa foi a minha impressão pessoal e também a impressão de boa parte da sociedade francesa. Talvez não concorde com as medidas, mas entendo muito o medo e a rejeição da população francesa a esta “invasão”. Mesmo no Brasil, ciganos não são bem vistos, nada conheço dessa cultura, nem de suas origens, mas devo confessar que minha imagem pessoal não é muito favorável. Pelo menos quanto aos que levantam acampamentos, sujam as cidades e amedrontam a população que tende a ficar na defensiva. Talvez nos falte compreensão histórica e integração.
Quanto ao véu islâmico, depois que seu uso foi proibido nas escolas francesas, muitas meninas têm dito que usavam o véu por imposição familiar e que após sua proibição conseguiram integrar-se com colegas de sala com quem jamais tinham tido proximidade: o véu separa, sua proibição integra. Vale lembrar que a proibição se extende a todo e qualquer tipo de símbolo religioso ostensivo, sejam eles judeus, cristãos ou mulçumanos. Para a pátria onde nasceu o feminismo, ver mulheres cobertas andando pelas ruas não é coisa fácil. Na maioria das vezes tudo que vem de imposição cultural, religiosa e familiar, o povo francês vai tender a repudiar. É da essência deles. É uma discussão muito difícil e ainda que opinando aqui e ali, prefiro refletir com contra-argumentos, pois o medo do extremismo também é real e legítimo. Não saberia como estabelecer limites. A única coisa que posso dizer é que querendo ou não, não gostaria de ver meu país invadido por uma etnia que por onde passa deixa um rastro de sujeira e destruição. Não gostaria tampouco de ver o Brasil invadido por uma etnia na qual as mulheres andassem cobertas pelas ruas. Não são nossos valores e isso nos agrediria exatamente como agride o povo francês.
Essas pessoas possuem nações que compactuam com seus princípios, o problema é que imigram para países ocidentais sem jamais se integrarem aos costumes dos mesmos. Isso me faz lembrar o Pacto Social de Rousseau, onde o indivíduo que vive numa determinada nação, para uma determinada nação decide imigrar ou numa determinada nação decide permanecer, com ela precisa estabelecer um contrato no qual ratifica os ideais e os costumes da sociedade escolhida. Caso não faça isso este indivíduo é considerado um estrangeiro entre os cidadãos. Isso não é preconceito, nem atentado à liberdade de expressão, é um imperativo social.
Em muitos países islâmicos as mulheres ocidentais são obrigadas a usar véus se quiserem visitar tais nações, sob pena de, do contrário, serem agredidas nas ruas. Se entendermos a proibição do véu islâmico como uma arbitrariedade e uma atitude xenofobista e preconceituosa temos que entender a obrigatoriedade de seu uso por mulheres ocidentais no mesmíssimo âmbito.
A França é um país orgulhoso de sua cultura e de sua língua. É talvez o país ocidental que mais influenciou filosoficamente o ocidente, através de seus sábios, de sua literatura, de movimentos como o Iluminismo e a Revolução Francesa. Contudo, a mesma França enveredou-se pelo imperialismo e junto com a Inglaterra partilhou a África. Juntas subjugaram nações mulçumanas e travaram na década de 60 sangrentas guerras de independência coloniais. Com a facilidade do conhecimento da língua, espalhada pelo imperialismo e a proximidade com a África, a França e outros países colonialistas do século XIX sofrem hoje com a imigração de pessoas vindas de suas ex-colônias. Há uma dívida histórica a ser paga e como dizia uma querida professora de história que tive (talvez plagiando algum pensador): “o chicote sempre volta no lombo de quem mandou dar”. No entanto, a discussão precisa ser colocada pelos dois lados em outro âmbito, longe das paixões e extremismos.
Se colocarmos na balança, a contribuição positiva da França para a cultura ocidental pesará muito mais do que o pragmatismo que levou este ou aquele governo a atitudes condenáveis. A suposta intolerância dos franceses à cultura mulçumana hoje, nada tem a ver com colonialismo em si. Tem muito mais a ver com duas visões de mundo distintas: uma ocidental e outra oriental. Não é por acaso que este choque hoje ocorre em solo francês. Não consigo vislumbrar outro país onde tal embate pudesse ser mais acirrado. O país que nos trouxe os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda que se desvirtuando aqui e ali, não consegue aceitar com facilidade a existência de realezas, de extremistas religiosos, de ingerências contra a liberdade feminina ou de países onde o poder religioso e o Estado se confundam. Imagine quando esse país é invadido por valores retrógrados vindos de fora e que tantos franceses combateram? Muitos foram os pensadores franceses que travaram uma verdadeira luta pela democracia, liberdade de expressão, direitos das mulheres e direitos humanos.
A França tem dificuldade de digerir que, em pleno século XXI e em seu solo, mulheres sejam obrigadas, por tradição, família ou maridos, a cobrirem seu corpo como se algo de vergonhoso devesse ser coberto. Aceitar que isso exista em uma nação estrangeira é uma coisa, aceitar que isso ocorra em seu próprio país é outra coisa muito diferente. Isso certamente é enfrentado pelos franceses como um retrocesso de conquistas sociais das quais historicamente foram paladinos. A postura da França para mim é resumida na frase de um grande francês, Voltaire, que dizia que às vezes era necessário "ser intolerante por amor à tolerância". Logo Voltaire que também nos deu máximas como: “não estou de acordo com o que você fala, mas lutarei até a morte para que tenha direito de dizê-lo” e que foi um grande pregador da tolerância. A questão é complicada e os frutos das medidas que tanto movimentam a opinião pública francesa e a comunidade internacional só poderão ser positivos se, de um lado o povo francês souber distinguir a defesa de seus ideais humanistas da xenofobia e do outro os muçulmanos e ciganos entenderem que, caso decidam integrar uma nação, esta nação pode ter valores e ideais muito diferentes dos seus. Os dois lados têm muito a entender e muito a refletir e não tenho pudores em dizer que, historicamente, os franceses são mais dados à reflexão. Considerando-se isso a responsabilidade do povo francês é enorme, pois são os maiores responsáveis pela condução do debate e serão os maiores responsáveis pelas conseqüências das atuais medidas, sejam elas boas ou ruins.